Quem tem um certo grau cultural de teatro e dramaturgia, já ouviu falar, já leu e viu peças do romeno Eugène Ionesco (1909-1994). Ele foi um dos maiores especialistas em patafísica (termo pouco conhecido, algo semelhante à metafísica) e no Teatro do Absurdo, retratando as coisas mais simples e triviais da sociedade. Estamos vivendo e sofrendo com tempos e pessoas das chamadas mentiras, factoides, fake news e negacionismo. Se tivéssemos que eleger três próceres nesses expedientes, temos o campeão brasileiro, ex presidente Jair Bolsonaro, o ex presidente Donald Trump e agora chegadinho de fresco, o ditador da Venezuela Nicolás Maduro. Só de acharem que o holocausto de Hitler não existiu, que a terra é plana e que ninguém foi à lua, nada mais precisa dizer desses personagens, para lá de histriônicos, fanfarrões e mentirosos. O mais danoso é que esses tais carregam os seus sectários, apoiadores e creditadores.
“Nós, pesquisadores, jornalistas, professores e tantas outras pessoas acostumadas ao uso da razão, devemos gastar energia intelectual para compreender a cegueira em que encontram levas e rebanhos de gente. É imenso o contingente de pessoas cuja opção foi não ver, não sentir e não ouvir. As palavras perderam sentido. Esquerda e direita são exemplos. Não explicam políticas de Estado, não qualificam projetos institucionais ou, mesmo, pessoais. Aconselho os antigos a usarem as velhas palavras com cuidado. Pode complicar e não explicar”.
Por que os negacionistas escolhem, para se fazer ver na cena política, afirmar o contrário dos fatos comprovados ou negar conceitos já estabelecidos e de consenso, sem qualquer preocupação em justificar ou comprovar suas afirmativas? Por abandono da razão ou por gosto pelo absurdo? Ainda, hoje, passada a pandemia e haver mais biossegurança da circulação livre das pessoas, muitas ainda acreditam em ivermectina e cloroquina para tratar covid19 e não tomam vacina pela crença de que elas fazem mal à saúde e não evitam covid19 e outras vacinas para outras doenças. Temos aqui o teatro ao natural do absurdo.
A razão, presente no pensamento clássico, defende a ideia de diálogo, da busca de justiça e da justa medida, gerida por homens de ciência. O objetivo é a construção e a manutenção de uma sociedade equilibrada, prudente, cooperativa. O logos, ou seja, a razão, para florescer depende do diálogo entre um Eu e um Outro. Ao comparar diferentes racionalidades, ao observar naturezas distintas e formas de viver, é possível rever, incessantemente, o lugar ocupado de cada um de nós no mundo.
Sociedades de tradição patriarcal, hierarquizadas, com dificuldades de mobilidade social e manipuladas pelas novas tecnologias dificultaram a construção e uso do diálogo como forma de comunicação social e revisão do lugar social. As redes, em sua dimensão digital, ampliaram o espaço e percepção do Eu e diminuíram o espaço e percepção do Outro. Os extremos são nomeados comumente como Eu e eles. “eles“ (em minúscula) representam o não Eu, aquele a quem não se atribui existência, coisa que deve desaparecer ou ser desaparecida, apagada. O Outro não tem direito à palavra, porque a palavra só faz sentido entre iguais.
O lugar do Outro, do interlocutor silenciado, foi ocupado por enredos absurdos, ações repetitivas e sem significado ou justificativa lógica. Alguns exemplos esclarecem: Hitler é de esquerda (apesar das evidências históricas), o Holocausto dos judeus e de outras minorias não existiu (apesar das provas), as ONGs estão incendiando as florestas (apesar de que os dados mostrem os autores bem mais prováveis dos incêndios), covid19 é “gripezinha” (apesar dos milhares de mortos com covas fotografadas), a cloroquina cura (embora a ciência não comprove a afirmativa), e assim tantas outras afirmações.
Aviso: quem disser que o rei está nu deve ser deletado. A qualificação absurda de fatos é repetida infinitas vezes com objetivo apenas de torná-los verdadeiros pela repetição em excesso. Frases de efeito também são muito utilizadas para desqualificar o interlocutor, do tipo “A montanha pariu um rato” ou “Faço isto em nome da nação”, simbolizando uma totalidade e unidade imaginária.
Qual a razão de se optar pelo absurdo, de sentir prazer em proferir afirmações desvairadas, de propor a criação de um inimigo fictício para justificar o uso da força e da violência? Qual a raiz da “nova barbárie”, adequada para consumo nas mídias digitais? Observem um detalhe merecedor de destaque. Teria o absurdo uma raiz? O que ele encobre e como encobre?
Da população mundial, 1% detém metade de toda a riqueza do planeta e 71% da população mundial é muito pobre, não raro passa fome e no horizonte vê, apenas, a desesperança. Os Estados Unidos, embora sejam um país muito rico, carregam índices altos e crescentes de desigualdade. O resultado é inevitável: desencantamento diante de um mundo marcado por absurdos reais, possíveis de serem comprovados estatisticamente.
Uma confederação internacional voltada para estudos e luta contra a pobreza no mundo (Oxfam) mostra em seus levantamentos que os seis maiores bilionários brasileiros concentram, juntos, a riqueza da metade da população brasileira. Isso significa que, em um país com aproximadamente 212 milhões de habitantes, seis deles possuem riqueza equivalente à de outros 105 milhões.
É razoável ou é absurdo? O Brasil é o país que mais concentra riqueza entre o 1% mais rico na América Latina, tendo seu coeficiente de Gini mais baixo entre os países latino-americanos, ficando atrás apenas de Colômbia e Honduras. A ciência tem avançado muito ao longo da história, desenvolvendo técnicas e tecnologia para responder aos desafios da fome, da sede e do frio. A ciência tem produzido conhecimentos em quantidade para elaborar instrumentos capazes de fazer diagnósticos e propor soluções capazes de modificar uma parte dessa trágica realidade. Os avanços da ciência e da tecnologia servem, cada vez mais, para parcelas pequenas da população. Observem, por exemplo, os tratamentos médicos e o preço de algumas medicações.
Em certa medida as palavras, a razão e o pensamento científico, utilizados constantemente na prática política, não geram resultados capazes de responder às necessidades de milhões ou bilhões de necessitados. Talvez seja esse o lugar da descrença na política, na democracia e no revigoramento de qualquer tipo de religiosidade entre a população. A desigualdade, acentuada por uma infinidade de situações visíveis e invisíveis, separa, hierarquiza, silencia e marginaliza parte das pessoas
Qual o lugar da esperança? O caminho é a busca da razão ou da desrazão, do absurdo? “O herói do absurdo, hoje, professa a desrazão e faz pouco da razão”. Os dados sobre as dificuldades de uma comunidade são levantados, o diagnóstico é feito e a solução é apresentada de forma racional por alguns membros da elite política, mas a população continua sem condições mínimas de higiene e de educação, com atendimento precário na área de saúde. Apesar de os problemas serem discutidos diariamente pelos meios de comunicação, a mudança, quando ocorre, é lenta demais.
O Estado, por meio de seus representantes eleitos, não responde aos desafios (distribuição de renda e bem-estar social), embora os políticos repitam, como mantra, os problemas não solucionados. A justificativa frequente é a falta de dinheiro, a corrupção e sistema eleitoral. Os argumentos apresentados não silenciam, não apagam a miséria e o desejo de consumo. A desigualdade, acentuada pela cor da pele, pelo poder e status expresso no consumo, pelo tratamento médico diferenciado, pela hierarquização dos sotaques regionais e gênero, pelo uso da língua e por uma infinidade de situações visíveis e invisíveis, separa, hierarquiza, silencia e marginaliza, de forma doída, parte das pessoas.
A sociedade contemporânea não é apenas desigual e corrupta. Ela vai além ao expor nas vitrines suas plumas e paetês, como se quisesse fazer doer a imensa desigualdade de uma democracia em crise. “O absurdo, presente na dramaturgia, serve como vacina e material para reflexão”
A palavra “absurdo” me conduziu em uma viagem para o Teatro do Absurdo, de Martin Esslin (1918-2002), um conjunto de peças surgido no pós-guerra, críticas à razão técnica e científica, instrumentos necessários em época de guerra. As peças encenadas tinham em comum uma reflexão sobre um mundo onde não há diálogo (pós-guerra), onde a linguagem perde sentido e o desligamento da realidade caracteriza a vida em sociedade. O existencialismo no pós-guerra colocou em cena a descrença diante do mundo e dos homens.
O teatro do absurdo utiliza diálogos sem sentido, gestos repetitivos e cenografia capaz de expor situações absurdas, como na peça O Rinoceronte, de Eugène Ionesco (1909-1994). Os homens se transformam em paquidermes, expressando o embrutecimento humano, a perda da sensibilidade e uma racionalidade em crise. A linguagem, utilizada por Ionesco, Samuel Beckett (1906-1989) e Arthur Adamov (1908-1970), entre outros ligados a essa corrente estética, é carregada de desolação, descrença na humanidade e profunda solidão. São sentimentos frutos da violência experimentada na guerra, expressas nas artes como crise existencial, problemática que ressurge na atualidade com outra conotação. O absurdo deixa o campo da existência e passa para o campo da linguagem. O absurdo passa a ser tratado como realidade. Realidade absurda e às vezes real. Real na desigualdade, na injustiça e na violência.
Os negacionistas são atores incapazes de abandonar os papéis, vivem deles, das máscaras. Atrás das personagens inexiste o ator, a pessoa, o sentimento.
Cena de O Rinoceronte, peça de Eugène Ionesco – O herói do absurdo, hoje, professa a desrazão e faz pouco da razão. Ele não experimentou uma crise existencial nem jamais refletiu sobre a condição humana. Nas redes sociais, o ídolo destemido e seus replicantes há muito perderam identidade política e ganharam teatralidade. São construtores solidários no ódio, como os supremacistas brancos. O enredo teatral envolve sangue de crianças transformado em alimento para o papa ou para os comunistas. As palavras são usadas como fábricas de clichês ou pelo avesso do seu significado de origem. As palavras não se referem mais ao visto, sentido, ouvido e enunciado. Faz parte do absurdo contemporâneo destruir o sentido das coisas especialmente no que diz respeito à generosidade, cooperação e negociação entre partes discordantes. Sentimentos considerados antigos, femininos, ultrapassados.
Os negacionistas são atores incapazes de abandonar os papéis, vivem deles, das máscaras. Atrás das personagens inexiste o ator, a pessoa, o sentimento. Figuras no palco apenas representam, investidos do poder das mídias, dispostos a chocar as plateias, alguns com a lembrança, tênue, do que eram as coisas e as gentes, antes de o ódio prevalecer entre os homens e se organizar em gabinetes.
Em cada momento da história a literatura, a dramaturgia e as artes proporcionam reflexões. Teatro do absurdo é a sugestão para este momento. O absurdo, presente na dramaturgia, serve como vacina e material para reflexão. É ao mesmo tempo antídoto para o absurdo contido nas fake news e também demonstração realista, visível nos gráficos e diagnóstico contemporâneo sobre a desigualdade social.
O mais instigante e estupefaciente em tempos pós Internet e redes antissociais, segmento este criado das redes sociais. Reprise-se bem esta nominação> Internet e redes sociais, foram idealizadas e concebidas para o bem das pessoas. Mas, delas se valem muitas mentes doentias e mentecaptos, invectivos, farsistas e falsários, fofoqueiros e bisbilhoteiros para assacar contra pessoas probas e honestas. Estas, por razoes espúrias do outro lado, tornam-se desafetas e antipatizadas de gente má e sem ocupação útil e laborativa.
E de forma grátis e vil, sem nenhum nexo causal, sem nenhuma prova material ou registro ou documental, inicia e cria-se uma rede de invectivas, factoides, fofocas falsas e injuriosas contra aquela pessoa alvo, aquela pessoa que não coaduna e nem compartilha ou incensa o modo de vida do autor, autora dessas vilanias. Trata-se de uma vindita pela vindita, vingança pela vingança, sem respaldo e suporte material ou de registro. Submundo e imundo das mentes e corações de gente má e desqualificada.
Sugestões de leitura: O Rinoceronte, de Eugène Ionesco, para a compreensão mais apurada dos paquidermes, a A Cantora Careca, e Esperando Godot, de Samuel Beckett, com a esperança trazida pelas mãos de um Godot.
João Joaquim de Oliveira, João Dhoria Vijle - Crítico Social e Escritor - Janice Theodoro da Silva, professora titular aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP