Não é tão incomum ouvirmos dizer que alguém, fulano ou sicrano, parece ter herdado certa cruz para carregar. Será? E então ao examinar sua vida, seu estilo de viver, constata-se que de fato, comparada com outras pessoas, mesmo pessoas da mesma casa, mesmo grupo e parentes próximos, referida pessoa é sufocada e atribulada com uma série de obrigações, afazeres, tarefas repetidas, labores diários dos mais cansativos e estafantes. Entretanto, casos existem em que nos surpreendemos por ser esse rol de compromissos diários uma escolha, um ato e gesto voluntário da pessoa fatigada, esfalfada, que rala e se mata diante de tantos compromissos; muitos dos quais que nenhum rendimento, vantagem, engrandecimento pessoal, moral e cultural trazem à pessoa sacrificada e fatigada. Foi o que me disse certa vez um observador, há pessoas que se não têm problemas, elas procuram arrumar. Parece um estilo de vida, penitências, servidão voluntária.
Antes dos exemplos bem comezinhos das vidas de muitas pessoas ao nosso redor, existem, de fato, algumas situações, ocorrências e obrigações, que a pessoa não deu causa a elas. E a estas a pessoa se torna executante, obrigado a se envolver e fazer por omissão e descompromisso de outras pessoas que se recusam ao chamado compartilhamento laborioso e fastidioso desses cuidados. Nesse cenário e natureza, valem algumas tipificações para robustecer a tese da cruz carregada.
Um exemplo bem encontradiço e registrado é o caso daquele indivíduo que constitui família, cria filhos e os cria mal. Porque não os educa segundo a pedagogia dos limites e nos princípios do - isso pode e isso não pode. Esse princípio se faz desde os tenros anos dos pequenos. Quando eles podem aprender os significados dos nãos e dos sins. E esse pseudochefe de família, leva sua vida na esbórnia do comer e do beber. Este é seu mantra, seu lazer e divertimento major. Comer, empanturrar, embebedar, engordar e adquirir todas as morbidades desse estilo mórbido de vida. Um dia a fatura chega!
A vida corre, esse pândega sujeito envelhece, continua ainda nas orgias da boca e do baco. Chegam os boletos e as faturas, duplicatas daquela insólita e mórbida vida, derrames cerebrais, infartos, doença renal, hipertensão, diabetes, colesterol. Demência degenerativa, alguma fratura, rabugices de sobra. Fraturas de fêmur, invalidez permanente. Agora então, proibido de libações etílicas, dependência absoluta. Dos filhos que não tiveram boa educação e decoro familiar. Algum, por um impulso interior e remorso e senso humanitário, assumirá os cuidados, predominantemente, diuturnamente, sofredoramente, esfalfante. E alguns dos folgados parentais próximos ou distantes nem aí estão, quem mandou?
Agora, analisemos aqui da visão psicanalítica, com isenção e sem meias palavras ou eufemismo. Ao mesmo tempo sem hipocrisia ou hipocorísticos. A atitude desse homem ou mulher que constituiu família e filhos e não os tratou pedagogicamente correto, não os formou e os instruiu. Apenas os engordou e os fez adultos biológicos. Repita-se: a atitude e conduta desse genitor (a) foi de absoluto deboche, escárnio e desprezo quanto ao futuro, de si e de seus tutelados filhos. Eu nunca me pus a pensar: bem, se não me cuido, quando mais idoso, posso de meus vícios colher só resultados negativos e me tornar um trambolho, um estorvo e peso morto a algum familiar. Por que não pensei antes? Eis uma gravíssima questão ética e de honestidade que cometi contra minha própria família. Imagine esse fluxo de consciência, no auge da senilidade, da velhice.
E para concluir tomo a asserção e frase inicial. Alguém parece ter recebido uma cruz de herança para carregar. Quem não leu deve ler o livreto de Étienne de La Boétie (1530-1563): Discurso sobre a servidão voluntária. Quantas não são as pessoas, que se elas não têm problemas, elas arrumam. São as cruzes opcionais, voluntárias. Quantas não são as pessoas que se tornam, por leniência e fragilidade moral, serviçais de outras que as exploram, que as fatigam, que as cansam, que as sugam nas energias pessoais! Quantas não são as pessoas, que sequer cuidam bem de si ou de idosos parentes! quantas não adotam pets para emporcalhar e importunar sua casa e abrigo! Quantas não são as pessoas, que servem a um namorado, a um cônjuge, a um parente, nos seus caprichos, negligências e exploração. A vida inteira. Quantas? Basta analisar isentamente ao redor de cada um, porque esses parentes exploradores, parasitas e sugadores de energia e outros recursos, infestam certas famílias. Arre!